quinta-feira, 1 de abril de 2010

Benefícios da música na igreja e dos perigos de seu mau uso

Por meio dessas palavras, Agostinho expressa seu temor de cometer erros com o uso da música. Na verdade, existe uma tênue linha que separa os benefícios da música na igreja dos perigos de seu mau uso. Tendo em vista a corruptibilidade humana e a nossa susceptibilidade aos enganos dos sentidos, torna-se fundamental uma constante análise de como temos utilizado a música em nossos cultos e reuniões eclesiásticas. Assim como é necessária uma luta por uma vida santa, é necessário um esforço desmedido para se utilizar a música convenientemente no meio do povo de Deus.

I. O QUE É MÚSICA?
A música tem sido definida como a “arte e ciência de combinar os sons de modo agradável ao ouvido”. Só por este conceito, já se tem uma noção da complexidade do assunto; pois o que é realmente agradável ao ouvido? Esta pergunta encontra respostas completamente subjetivas, uma vez que o que é agradável ao ouvido de um não é necessariamente agradável ao de outro. Poderíamos ainda definir música como uma seqüência (artistica-mente criada e cientificamente pesquisável), de sons e silêncios que formam um todo coerente.
A igreja freqüentemente considera a música como um dom. Porém, ela não é um dom. Em nenhuma das listas de dons espirituais no Novo Testamento há a menção da música. Seria mais próprio se sempre a referíssemos como um talento, dentro do seguinte critério: os dons são dados pelo Espírito Santo aos crentes para a edificação do corpo de Cristo (Ef 4.11,12). Somente os salvos pela obra redentora de Cristo recebem esses dons. Já os talentos, que também são dádivas divinas, são confiados também aos ímpios como fruto da graça comum.
A música deve ser encarada como um meio e não como um fim. Ela conduz a algum objetivo ou alvo, que pode variar desde a glória de Deus até à glória do próprio homem ou do diabo. Os objetivos também podem ser entretenimento, aprendizado, crítica, elogio, desabafo, terror, etc. É como uma chave de fenda que, nas mãos de um mecânico, serve para ajustar e consertar um motor; nas mãos de um ortopedista, auxilia na fixação de pinos metálicos no tratamento de fraturas ósseas; nas mãos de um marceneiro, serve para montar um armário que ele acabou de fazer; nas mãos de um assassino psicopata, serve para tirar a vida. Nesse exemplo, há uma série de alvos a serem alcançados, sejam eles bons ou ruins. O meio para se atingir esses alvos foi o mesmo (a chave de fenda), mas os objetivos foram os mais diferentes: desde um ajuste num motor a um homicídio. Assim também é a música: ela tanto poderá servir para a glória de Deus, como para outros objetivos; dependerá de quem a utiliza e de como ela é utilizada.

II. ONDE A MÚSICA SE ENCAIXA NA IGREJA?
Se perguntássemos a um auditório: “para quê Jesus nos salvou?” Alguém poderia responder: “para desfrutarmos da glória eterna”. “Então, por que ainda estamos aqui neste mundo?”, perguntaríamos. O que acontece é que nos esquecemos do propósito fundamental para o qual Deus nos criou: para o louvor da sua glória (Is 43.7; Rm 11.36). No Breve Catecismo de Westminster, a primeira pergunta é: “Qual o fim principal do homem?” A resposta é: “Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. A questão é: como glorificamos a Deus? Segundo o autor reformado John MacArthur Jr., podemos glorificar a Deus:confessando a Cristo como Senhor; priorizando a Sua glória como lema de vida; confessando o nosso pecado; confiando nEle; dando frutos; sofrendo por Ele; estando contentes com o que Ele nos dá; orando; pregando a Palavra; levando outros a Cristo; mantendo a pureza sexual; mantendo a unidade; louvando-O.
Poderíamos resumir as funções da igreja em apenas três frases:
- Ministramos a Deus com louvor e adoração, de lábios e de coração.
- Ministrarmos uns aos outros com dons e talentos, numa atmosfera de amor.
- Ministrarmos à sociedade com evangelização e serviço, boas novas e boas obras.

A música serve como meio para se atingir cada um desses alvos da igreja. Ela pode ser um instrumento de adoração a Deus (veja o exemplo do Salmo 96 ou do mavioso hino “Santo, Santo, Santo!”). De acordo com o maestro Parcival Módolo, a música tem duas tarefas importantes no culto: a de impressão, que visa a gerar uma atmosfera propícia ao culto, à adoração, à contrição e à edificação, o que só com o instrumental ela já faz; e a expressão, que é a principal, e tem por objetivo subsidiar o texto, transmitir uma mensagem. O importante, porém difícil, é encontrar uma fórmula ideal que combine coerentemente a impressão e a expressão que uma música deve proporcionar.
A música pode servir de auxílio no exercício de dons espirituais. Um compositor que possui o dom de exortação poderá compor canções que exortem os crentes a uma vida santa; o que possui o dom do ensino poderá ensinar doutrina através da música. Por exemplo, o hino “Amor Perene” fala do amor soberano, salvífico e gracioso de Deus manifestado pela Trindade: o Pai, nos escolhendo antes da fundação do mundo; o Filho, fazendo a redenção objetiva na cruz do calvário; o Espírito Santo interiorizando em nosso coração a obra do Pai e do Filho. Depois encerra afirmando a doutrina da Perseverança dos Santos:

“E sempre me amarás, porque jamais inferno
Ou mundo poderão ao teu querer se opor,
Ao teu decreto, ó Deus, ao teu decreto eterno,
Ao teu amor, ó Pai, ao teu amor superno.
Meu Deus que amor! És sempre e todo amor!”

A música ainda auxilia na evangelização. Quantas pessoas chegaram a Cristo ouvindo uma música! De vez em quando ouvimos alguém dizer: “estava passando em frente à igreja e entrei para ouvir a música que estava sendo cantada. De repente, aquelas palavras entraram em meu coração e então cri no Senhor Jesus e ele me redimiu!”

Um bom exemplo de uma música como meio de evangelização é o hino “Salvação Graciosa”, ou a canção “Você Pode Ter”, de Sérgio Pimenta, cuja letra afirma que, tendo a pessoa muitos bens ou sen-do ela pobre, será sempre como folhas ao vento, esperando o momento de cair; só terá alguém a verdadeira paz, se tiver um encontro com Cristo.

III. TENDÊNCIAS MODERNAS
Não se crê mais em verdades absolutas; o relativismo tomou conta dos principais círculos acadêmicos do mundo ocidental. Não há setor de nossa sociedade que não tenha sofrido influências desse sistema: a ciência, a ética, a arte e, como uma subdivisão desta última, a música. Diz Os Guiness, em sua famosa palestra “Cuidado com a Jibóia!”, que a mo-dernidade (ou “Pós-modernidade”) é marcada por três fenômenos, pluralização, privatização e secularização.

A)Pluralização: A sociedade atual valoriza a multiplicidade de opções, objetos da escolha humana que vão desde produtos de consumo a valores éticos e comportamentais. Por exemplo, a homosexualidade não é vista como uma perversão sexual moral; é apenas uma opção, assim como o heterossexualismo.

B)Privatização: As pessoas, depois de fazerem sua opção, trancam-se numa espécie de jaula aberta, onde ninguém tem o direito de interferir em suas decisões, nem de recriminar ou reprovar seu comportamento. Por isso há tantas campanhas em prol de minorias como os homossexuais.

C)Secularização: Como resultado dos dois fenômenos acima, a sociedade mergulha cada vez mais num universo de impiedade e indiferença para com as coisas de Deus. A Bíblia não tem crédito porque não se acredita mais em um padrão objetivo a ser seguido.

O que tudo isso tem a ver com música? Muita coisa. A pluralização fez com que hoje não haja mais referência do que seja boa música. Aliás, não se fala mais em boa música porque, na concepção pós-moderna, todas as músicas são boas! “Música boa” é relativo. O importante é você escolher o seu estilo preferido e não se discute mais nada. Cada um faz sua opção musical e o outro deve apenas respeitar (privatização).
Por causa da pluralização, igrejas têm adotado costumes nada convencionais a fim de atenderem a qualquer gosto musical ou estilo de vida. Já existem igrejas para surfistas, onde predomina o reggae; outras para roqueiros, onde só se toca rock’n roll; igrejas só de homossexuais (“gay churches”), onde a motivação não é agradar a Deus ou buscar a sua glória, mas a satisfação pessoal e o “sentir-se bem”. Observe que a impressão que estas músicas causam não está voltada à majestade gloriosa de Deus, mas a uma atmosfera ligada ao gosto pessoal e deleite dos próprios membros.
Existem igrejas que realizam até três cultos dominicais, cada um voltado a um tipo diferente de pessoa. O primeiro é tradicional e utiliza somente hinos como cânticos congregacionais, freqüentado apenas por idosos. O segundo é de liturgia mais informal, com um longo “período de louvor”, e é freqüentado por jovens e pessoas de idade mais madura, porém ainda não idosos. O terceiro culto é completamente “alternativo” e barulhento, fre-qüentado apenas por adolescentes e alguns jovens. É frustrante ver "três igrejas” dentro da mesma. Quando a pluralização exerce sua terrível ditadura, torna-se necessário fornecer opções de estilos cúlticos que agradem aos diversos gostos.
A secularização ganha terreno dentro das igrejas à medida que elas deixam de lado o padrão bíblico de nos apresentarmos diante de Deus com mãos limpas, sem qualquer associação com o que é pecaminoso, oferecendo o nosso próprio corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: o culto racional (Rm 12.1). Em lugar desse padrão, abrem espaço para cultos absolutamente intuitivos onde se valoriza o que se sente. O apelo emocional faz com que todos passem por verdadeiras sessões de catarse norteadas pelo hedonismo, enquanto gastam-se até quinze minutos em uma mesma música que se repete várias vezes numa espécie de lavagem cerebral.
A pregação da palavra, na maioria das igrejas, não contempla o real ensino das Escrituras. O método de interpretação preferido é o antigo alexandrino, de pura alegoria. Com isso, a pregação expositiva, que procura expor a mensagem simples e direta do texto, perde seu lugar para uma alegórica, que é inteiramente subjetiva, não contemplando o real ensino bíblico, acabando por simplesmente agradar os ouvintes. Isso porque esse tipo de prédica não segue um padrão homilético que visa à apreensão da mensagem escriturística, mas um massagear dos ouvidos e um intenso estímulo às emoções através de gritos frenéticos comunicando frases prontas de extremo impacto. O resultado disso é a superficialidade.
Algumas composições recentes têm acompanhado essa tendência e se revelado igualmente superficiais em suas respectivas letras. Portanto, na função musical de subsidiar o texto, expressão, deixam a desejar. Fala-se muito em “poder”, apela-se às emoções, declaram-se coisas, ordena-se, mas não se fala da pessoa e obra de Cristo, dos atributos de Deus, muito menos das doutrinas da graça. Parece que os ideais da Reforma, que incluem a necessidade de cantarmos a nossa fé, foram abandonados. É difícil encontrar profundidade no conhecimento de Deus e de Sua vontade por meio das letras. Não se fala em mudança de vida, em verdadeiro arrependimento, em obediência, em fazer a vontade do Pai. O importante é sentir-se bem. Assim caminham as igrejas secularizadas onde os membros se sentem bem.
Calvino, ainda no século 16, já havia percebido os perigos de secularização oferecidos pelo uso da música na igreja: “Há sempre a considerar-se que o canto não seja frívolo e leviano; pelo contrário, tenha peso e majestade, como diz Santo Agostinho. E, assim, haja grande diferença entre música feita para alegrar os homens à mesa ou em casa e os salmos que se cantam na igreja, na presença de Deus e de seus anjos.” Aí, sim, a música cumprirá bem o seu dúplice papel de impressão e expressão no culto.

IV. CRISE DE IDENTIDADE
O processo de secularização vem impingindo sobre a igreja uma verdadeira crise de identidade. Hoje é possível confundir cultos dominicais com shows onde os popstars desfilam roupas extravagantes e são utilizados recursos de ponta em iluminação e jogos de luzes coloridas. As máquinas de fumaça tornam o cenário opaco e acentuam ainda mais as cores vivas dos holofotes. A impressão que isso causa não é de adoração a Deus, mas de entretenimento e, por que não dizer, carnalidade.
O volume do som é altíssimo; quase comparado ao ruído que produz uma turbina de avião. Por quê? Porque as batidas de uma música em alto volume estimulam a produção de adrenalina, um hormônio que é extremamente estimulante e que encoraja a tomar certas atitudes que não tomaria em condições normais. É por essa razão que o volume do som numa pista de dança é tão alto. Agora algumas igrejas compartilham do mesmo princípio que o mundo: precisam de som alto para que os crentes sejam estimulados e estejam “livres” para adorar ou “liberem o louvor”. E ainda atribuem essa “liberação” ao Espírito Santo.
Creio que uma frase que ouvi de uma jovem que freqüenta cultos “alternativos”, que mais parecem uma “festa bate-cabeça”, segundo suas próprias palavras, ilustra bem a crise de identidade da igreja moderna: “eu acho que o louvor tem que ser assim mesmo, senão ninguém sente vontade de entrar na igreja para assistir a um culto”. Se o propósito da igreja fosse atrair curiosos e carentes de diversão, tudo bem; mas a Bíblia nos ensina diferente: “vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Nosso propósito maior é glorificar a Deus e isso fazemos cultuando com ordem e decência (1Co 14.40) e manifestando a glória de Deus ao mundo por meio de uma vida santa e da pregação da Palavra (Sl 96.1-3).
Para muitos líderes, é melhor que os jovens dancem, pulem e batam cabeça na igreja do que num salão de baile. E assim a igreja vai perdendo cada vez mais sua identidade e sua voz profética. Como condenar o comportamento mundano dos incrédulos, se dentro da igreja se faz o mesmo? “Somos livres para fazermos o que quisermos”, alegam uns, mas a Palavra de Deus encerra a questão: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne” (Gl 5.13).

V. MÚSICA E ESPIRITUALIDADE
O cristianismo é um só e os mandamentos de Deus são para todos. Mas, a despeito disso, muitos músicos cristãos têm vivido um cristianismo diferente do que cantam em suas músicas e isso é um problema sério que deve ser encarado. Quando eu estava começando a ter acesso ao meio artístico musical cristão, ao fazer parte da 54ª Equipe de Vencedores Por Cristo, ouvi dizer que eu perceberia atos e hábitos polutos no meio musical, por parte de músicos cristãos. Será que existem dois cristianismos, um para os músicos e outro para os leigos em música? O cristianismo para os músicos seria mais complacente e, para os leigos, mais severo? É claro que não!
Algumas conseqüências seguem os músicos que não primam por uma vida limpa. Primeiro, diante de Deus, sua música não faz sentido, pois Deus vê o coração; todas as nossas motivações e intimidades estão perante Ele como um livro aberto. Segundo, diante do público, sua imagem fica manchada, pois, mais cedo ou mais tarde, o que está oculto por trás de palavras bonitas, lindíssimas metáforas, melodias magníficas e acordes geniais, é descoberto ou evidenciado num deslize inevitável. Terceiro, falta autoridade em quem fala e canta mas não vive o que diz. Foi talvez pensando nisso que o saudoso Sérgio Pimenta escreveu e cantou: “As palavras não dizem tudo, mesmo que o tudo seja fácil de dizer; com certeza, fala bem melhor o mudo, se sua atitude manifesta o que crê”.
Vivemos dias difíceis. Parece que não está na moda falar em vida com Deus para se lidar com música na igreja ou em outros locais, mas o cristianismo é o mesmo de 20 séculos atrás. As palavras de Paulo ecoam hoje: “Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados…” (Ef 4.1). Sempre que participo de algum seminário de música, alguém lê Efésios 5.19: “falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais”. No entanto, nunca vi alguém fazer uma conexão com o contexto próximo anterior, como Efésios 4.24: “e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade”. Para Paulo, revestir-se do novo homem em justiça e retidão é cumprir as ordens expressas de Efésios 4.25-5.5: deixar a mentira, a ira descontrolada, o furto, as palavras torpes, a amargura e as paixões sexuais desenfreadas. Em seus respectivos lugares devem entrar: a verdade, o autocontrole, o trabalho honesto, a linguagem que edifica, o amor que perdoa e as ações de graças. Isso é espiritualidade!
É extremamente árduo preparar-se musicalmente para fazer um trabalho musical de alto nível, porém, o mais difícil é preparar-se como músico servo de Deus. É preciso muita oração, leitura da Palavra, leitura de bons livros, acompanhamento pastoral e aproveitamento dos momentos de aprendizado na sua própria igreja, pois o músico cristão precisa renovar sempre sua mente, a fim de ter o que dizer e mostrar aos que o ouvem. Como seria bom se, ao invés de ouvir falar que muitos músicos cristãos exibem costumes e hábitos antiéticos, ouvíssemos alguém dizer: “é impressionante como os músicos cristãos têm se comprometido em unir música com espiritualidade”.

CONCLUSÃO
Eis a grande problemática litúrgica enfrentada pela igreja: precisamos encontrar o equilíbrio que envolve o uso da música “com arte e com júbilo” (Sl 33.3): impressão; e, ao mesmo tempo, com a devida expressão (“cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente”, 1 Co 14.15), concentrando-nos nas letras e harmonizando-as com melodias coerentes com a mensagem cantada e que para ela apontem. Lembremos-nos de que a adoração em espírito e em verdade (Jo 4.23) envolve uma apresentação tanto entusiástica diante do Senhor, com espírito adorador, quanto embasada na verdade da sua Palavra, que contrasta com tudo o que é falso.
E que Deus seja servido em despertar na igreja músicos que levem a sério a busca por uma musicalidade que alie arte e espiritualidade, sem perder a identidade, para a honra, glória e louvor do nosso Deus Altíssimo. Soli Deo gloria.

Rev. Charles Melo de Oliveira - Presidente do conselho de hinologia, hinódia e música da IPB